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Condessa de Ségur é certamente um nome familiar para o público brasileiro. Seus livros frequentam há décadas nosso cânone escolar, e não poucos leitores na faixa dos quarenta anos ou mais terão conservado, além da lembrança e do hábito da leitura, algum surrado exemplar de João que chora e João que ri, Memórias de um burro ou outra de suas obras mais conhecidas.

Apesar do prestígio que envolve seu nome, é fato que nem sempre a condessa recebeu o tratamento editorial que lhe era devido. As narrativas que compõem estes Novos contos de fada (aliás, sua obra de estreia) têm circulado entre nós sobretudo em versões parciais, em “coletâneas” ou “seleções” que, não contentes em excluir esta ou aquela narrativa, chegam a subtrair parágrafos inteiros aos contos publicados. Tal não é o caso desta edição. O que o leitor tem em mãos é a tradução integral dos Nouveaux contes de fées pour les petites enfants, tal como a autora os concebeu.

O título singelo e aparentemente redundante requer alguma explicação. Afinal, que pode haver de tão novo no gênero conto de fadas? E quem além das crianças teria interesse em histórias desse tipo? Peço aqui sua licença, leitor talvez já mais crescidinho, para contar uma história que o ajudará a compreender mais profundamente o que tem diante de si.

Em 1856, ano em que a condessa de Ségur publica este seu livro de estreia, o conto de fadas ainda não se tinha consolidado como um gênero próprio da literatura infanto-juvenil. Até meados do séc. XIX, esse gênero ocupava um lugar bastante modesto no conjunto da produção literária dirigida à infância. A verdade é que, até aquele momento, a maior parte dessas narrativas tinha por alvo não o público infantil, mas o público leitor em geral, composto majoritariamente por adultos. Surpreendente quanto possa parecer hoje em dia, esse fato faz todo o sentido quando consideramos a origem do gênero.

Não há dúvida de que narrativas fantásticas sempre existiram. Transmitidas sobretudo oralmente – por mães, governantas ou amas de leite –, essas histórias sempre tiveram lugar no folclore das diversas nações europeias, e sua origem se perde nas brumas do tempo. Vistas de início com desconfiança, e tidas até mesmo como resquícios de superstições pagãs, essas narrativas começam a despertar interesse mais sério a partir de fins do séc. XVII, particularmente na corte francesa e nos salões parisienses. Foi nesses ambientes que surgiu o termo “contes de fées”.

Tratava-se então de um divertimento erudito e aristocrático, em que crônicas, novelas ou anedotas de cunho popular se viam frequentemente mescladas a referências literárias clássicas, fusão essa de que resultariam as estruturas básicas do gênero. Temos um exemplo disso no conhecidíssimo A bela e a fera, cujas versões clássicas, escritas por Mme. de Villeneuve e Mme. Leprince (que faziam parte do círculo formado por Charles Perrault), foram baseadas no episódio dos amores de Psique e Cupido, narrado por Apuleio em O asno de ouro.

Essa dupla origem erudita e popular renderia ao conto de fadas um lugar de destaque numa das mais famosas controvérsias literárias de todos os tempos, a chamada “Querela dos antigos e modernos”. Em manifestos separados, tanto Perrault quanto sua sobrinha, Mlle. Lhéritier, defenderam que os contos de fada provavam a superioridade da cultura francesa frente aos modelos greco-romanos. Querelas e nacionalismos à parte, o episódio nos mostra a seriedade com que esses precursores encaravam o gênero então nascente. Membro da prestigiosa Academia Francesa, Perrault acreditava que a adaptação de histórias populares em fábulas de cunho moral serviria de modelo para uma literatura verdadeiramente moderna e nacional.

A julgar pela influência que o gênero exerceria na cultura europeia como um todo, sobretudo a partir do Romantismo alemão, pode-se dizer que Perrault não deixou de ter alguma razão. Novalis, Brentano, Hoffmann e Goethe estão entre os autores que fizeram do conto de fadas um veículo para reflexões de cunho estético, moral e filosófico. Na música, a influência do gênero pode ser vista nas obras de Mozart, Schumann, Delibes, Puccini, Rossini, Tchaikovsky, Wagner, Offenbach e Dvorak. Os exemplos multiplicam-se na pintura, no teatro e, mais recentemente, também no cinema.

Mas foi somente no início do séc. XIX que o conto de fadas começou a se fixar como um gênero exclusiva ou predominantemente infantil, sobretudo a partir dos irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen. Não que o potencial pedagógico dos contos de fada tenha sido até então ignorado, longe disso. Já em 1730 veio a lume um conjunto de contos que Fénelon, arcebispo de Cambrai, escrevera quarenta anos antes para o delfim da França, filho de Luís XIV. Poucos anos depois, em 1743, Mme. Leprince de Beaumont  publica seu Le magasin des enfants, igualmente dirigido ao público infantil. A predominância do público adulto, porém, permaneceria ainda por cerca de um século. Isso provavelmente explica por que nossa condessa sentiu necessidade de esclarecer já no título o público a que seu livro estava destinado.

Quanto à novidade que igualmente anuncia, trata-se do seguinte. Ao contrário de boa parte das narrativas dos séculos anteriores, os contos da condessa de Ségur são criações literárias originais, elaboradas especialmente para o público infantil, e não adaptações de histórias mais ou menos conhecidas. É claro que isso não teria sido possível se, entre fins do século XVII e meados do séc. XIX, o conto de fadas não tivesse assumido a forma e as estruturas de um gênero específico e reconhecível. Daí que não faltem aos contos da condessa de Ségur os esquemas, motivos ou funções (para usar o termo de Vladimir Propp) sempre presentes em narrativas do gênero.

Uma proibição que é transgredida e da qual decorre o banimento, a prisão ou algum feitiço; a tarefa – ou série de tarefas, geralmente três – impossível que promete restaurar a ordem das coisas; os encontros providenciais com seres fantásticos; as armas mágicas que vão aos poucos compondo a identidade heroica do protagonista; a virtude a ser provada, ou ainda o vício a ser purgado; e, por fim, o desenlace que revela ao herói seu destino sublime. Eis os elementos que, presentes nos contos da condessa de Ségur, remetem-nos seja à narrativa folclórica tradicional, seja ao gênero literário do conto de fadas.

Por trás dessas recorrências, há duas ideias estruturantes: o tema da metamorfose (que é no fundo a forma fantástica dada nos contos de fada à divisa “homem, torna-te o que és!”) e o caráter essencialmente miraculoso do mundo natural, cujas mutações espelham as mudanças da vida da alma. Já o inescapável final feliz, em que frequentemente o protagonista se vê transformado em príncipe ou princesa, parece querer recordar a nobreza intrínseca de nossa vocação humana.

quarta-capa-contos-de-fadas-condessaO conto de fadas surgiu da tradição literária oral e, mesmo quando consignado por escrito, os traços que remontam a essa origem jamais desapareceram por completo. E nem poderiam desaparecer, já que é muitas vezes pela boca dos pais, e antes de que tenham ingressado no ensino formal, que as crianças travam seu primeiro contato com esse universo literário cujas raízes penetram fundo na tradição cultural europeia. Foi uma de nossas preocupações centrais, portanto, produzir um texto capaz de fluir com encanto e naturalidade nesse contexto inicial de recepção, sem no entanto prejudicar a releitura que, anos depois, a criança poderá fazer por conta própria.

E dado que o encanto dessas histórias reside não apenas no conteúdo, mas igualmente na forma, ou seja, na atmosfera verbal em que palavras são coisas (coisas muito sérias e fantásticas), foi também nossa preocupação dotar o texto em português dessa espécie de poder mágico do qual a criança pode se apropriar e com o qual pode conviver anos a fio, quem sabe edificando para si mesma outros tantos mundos fantásticos.

As criações da imaginação não são jamais produtos perecíveis: elas deixam marcas, elas rendem frutos, tanto nas crianças quanto nos adultos, tanto na alma quanto na cultura. Com essa reflexão, que é também uma promessa e uma advertência, encerro este prefácio, desejando boa leitura a vocês, crianças de todas as idades.

F. B. de Morais

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